sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Solidariedade

Numa manhã, há muitos e muitos anos, cem mil, quinhentos mil ou mesmo um milhão de anos, o número exato não é relevante, a natureza encontrava-se numa dessas encruzilhadas evolucionárias sempre freqüentes mas raramente bem sucedidas. Caminhava pela savana um ser meio ereto, meio curvado, andar trôpego, cambaleante, parecia pouco à vontade com sua nova postura. Olhos atentos a qualquer movimento brusco, afinal a assustadora e perigosa noite mal havia terminado quando seus olhos se depuseram sobre uma forma indistinta no meio da relva, aproximou-se e viu um seu semelhante ferido, talvez por alguma fera noturna. O andarilho abaixou-se, arrastou a criatura para uma sombra, limpou suas feridas, deu-lhe de beber e dividiu com ele o pouco do alimento que trazia consigo. A natureza nesse exato instante da encruzilhada evolucionária decidiu qual caminho seguir.
O desenvolvimento da espécie humana, ao contrário do que se diz, não se deu pela inteligência, antes, decorreu da solidariedade. Naquela longínqua manhã ao dividir espontaneamente seu alimento aquele ser primitivo estabeleceu as mais profundas raízes da sobrevivência da espécie. Ali, naquela alvorada evolucionária, a natureza através do gesto do andarilho estabeleceu as bases de evolução da nova espécie e que haveriam por dar sustentação à sua sobrevivência e propagação. Não é por outra razão que em todas as culturas, em todas as religiões, o símbolo mais sagrado, o ponto mais alto da liturgia se dá com o ato de compartilhar o pão, torná-lo comum: a comunhão. A cada vez que celebramos a comunhão nos remetemos àquela longínqua manhã, invocamos os nossos mais profundos e primitivos instintos e que nos garantiu o sucesso evolucionário: o da solidariedade.
O radioamadorismo, igualmente, teve a solidariedade como seu amplificador de desenvolvimento; no antanho, a atividade principal do rádio-amador era o apoio às comunicações, ou, nas mais das vezes, o único provedor da comunidade. O próprio nome da liga norte-americana de rádio-amadores é decorrente dessa atividade: American Radio Relay League. O dicionário Webster assim define relay: "the act of passing along (as a message)". Nos primórdios do rádio era crença corrente de que quanto maior o comprimento de onda maior seria o alcance da comunicação, mas, na realidade, os sinais iam pouco além das cidades vizinhas. Assim, para retransmitir uma mensagem da Califórnia para o Kansas, por exemplo, era preciso uma rede estações que iam retransmitindo a mensagem, cidade por cidade. E lá iam os amadores passando noites em claro, movidos pela solidariedade, até verem as mensagens chegarem aos seus destinatários.
As comunicações comerciais melhoraram, tornaram-se mais confiáveis e praticamente extinguiram a prática do QTC. Teria o avanço tecnológico sepultado a solidariedade? Ao contrário: durante as expedições ou aparecimento de países mais difíceis, os semi-raros, o indefectível espírito de solidariedade vêm à tona e escutamos estarrecidos vários indicativos serem utilizados por solidários companheiros para que aqueles possam ser colocados no log do DX. Tenho por hábito a prática da coruja, raramente fico a chamar geral ou a trabalhar países que já tenho confirmado; durante as expedições procuro trabalhar as bandas que me faltam e passo o resto do tempo corujando pile-up, minha diversão favorita, e de quebra ainda assisto as maiores demonstrações de solidariedade imagináveis. Vejo colegas tidos como sérios irem para o log da expedição sem sequer estarem presentes nas suas estações. Esses colegas não evoluíram, nem como seres humanos, por trapaceiros, nem como radio-amadores, não passam de criaturas apequenadas pelas suas mazelas, mas seus scores, estes sim continuam evoluindo.
73 DX de PY2YP - Cesar

Nenhum comentário:

Postar um comentário