sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Lids à solta

Indaiatuba, 20 de agosto de 2012, 11:34 UTC, 10 metros SSB.
- D64K: Papah yankee two again
- Papah yankee two yankee papah
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta

- D64K: Papah yankee two again
- Papah yankee two yankee papah
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta (apresentando visíveis sinais de nervosismo)

- D64K: Papah yankee two ending papah only please
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta (ensandecido)
- Papah yankee two yankee papah

- D64K: Only Papah yankee two ending papah all others stand by please
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta (agora em desespero)
- Papah yankee two yankee papah

- D64K: Only Papah yankee two ending papah. Ending papah please. All others QRX.
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta (o descontrole tomou conta do cérebro; já não escuta mais e está completamente rouco)
- Papah yankee two yankee papah

- D64K: I am sorry. Delta kilo three germany bravo you are five nine
- Papah X-ray five lima india delta... india delta... india delta (sobrou apenas um resquício de voz, já não atrapalha)

Sigi, DL7FT, que estava ao microfone de D64K interrompe o pile-up e começa um longo QSO com um seu conterrâneo. Os sinais permanecem ligeiramente acima do ruído durante quase todo o comunicado. Cerca de intermináveis 5 minutos depois o sinal começa a subir rapidamente, S3, S6, S8 quando Sigi passa para inglês e diz: I am sorry guys for taking the QSO so long but I had to do that. O sinal agora está em S9+10 dB. Penso comigo: agora ele não escapa basta que solte o PTT e estarei no log. Não haverá LID no universo que possa me atrapalhar, além do que o LID está completamente afônico. Mas, o Sig termina sua fala comunicando: I'm changing frequency to one eight one four zero. Faço algumas chamadas mas de nada adiantam, ele realmente fora embora levando consigo o deplorável LID.
Nada restando que pudesse ser feito, desliguei tudo, desconectei as antenas, peguei a xtal e voltei para São Paulo, já com um certo atraso e obviamente frustrado. Decidi que auto ministraria o indispensável anti-depressivo durante o gray-line do anoitecer, black label of course.
Uma das coisas de que me orgulho na minha carreira de DX são os meus logs em papel que fizeram parte da minha estação entre maio de 1974 e abril de 1994 quando encerrei o log com J88DS em A2. O velho log com letra de engenheiro dera lugar a um moderníssimo 386 rodando o DXBASE embaixo do DOS. Ao migrar para o log eletrônico havia ficado a promessa de digitar os logs quando sobrasse um tempinho, promessa que ficou me incomodando por longos 17 anos até que no segundo semestre de 2011 finalmente a cobrança venceu a preguiça e comecei a digita-los, QSO por QSO, página por página, todos devidamente checados e rechecados ao final de cada página. No início a tarefa era terrivelmente entediante, um porre. Mas, aos poucos começaram a surgir alguns países em bandas que não me lembrava mais de tê-los trabalhado algum dia. Em 15 metros: 8Z4A, Zona Neutra; 3Y5X, Bouvet; KZ5OJ, Zona do Canal. Em 10 metros: HK0AA, Serrana Bank; D68KN, Comoros; ZK1MB, North Cook; KP2/KP1, Navassa e ZS8MI, Prince Edward. Ao terminar a digitação comecei a me amaldiçoar por não ter feito isto antes, cobrar esses QSLs depois de tanto tempo não seria das tarefas mais simples. A Mary Ann Crider, WA3HUP, havia encerrado suas atividades como um dos mais respeitados managers do mundo e não consegui confirmar a Zona Neutra em 15. O manager de HK0AA havia falecido e sua viúva queimara o log com grande satisfação e algum resquício de vingança, tardia, mas ainda assim doce, segundo me disseram. O QSL para o manager de D68KN havia retornado com os dizeres: "destinatário não encontrado". Os demais recebi-os todos, inclusive Navassa em RTTY de uma outra operação. A Zona do Canal os meus apontamentos dizem que tenho confirmado, o diabo será encontrar o QSL de KZ5OJ no meio dos milhares de QSLs que tenho guardado em Indaiatuba. Tenho outros QSOs com KZ5 em 15 mas os logs perderam-se no tempo, uma pena.
Ao anoitecer o anti-depressivo black label, straight for sure, me fez esquecer o incidente com o D64K e passei a procurar uma forma de recuperar o D68KN de março de 1991. Pedi ajuda a um amigo japonês sobre o paradeiro do manager, JL3UIX, mas as notícias não foram boas, ele abandonara o rádio e mudara de cidade. Fiz uma pesquisa na internet e encontrei uma foto do QSL com os indicativos dos operadores e pude mandar alguns e-mails. Depois de alguns dias recebi a resposta de VK4IMX ex-JJ3IMX que havia se mudado para a Austrália e por sorte ainda mantinha uma cópia do log e alguns QSLs em branco. O Yoji, muito gentil, enviou o QSL confirmando o país número 339 em 10 metros. Com os novos: Swains, Papua e Salomon, trabalhados após Comoros mas ainda não confirmados, chegarei em 343, o que considero um número digno de países para a banda de 10 metros que é uma banda difícil.
Para alguns operadores egressos daquela banda, aquela próxima aos 10, o DX Code of Conduct é letra morta e enterrada, não sabem do que se trata. Nem poderiam.
Fica a lição: confirme os países logo após trabalha-los e durante o pile-up veja se o LID do sul não está no ar.
Post scriptum: O indicativo PX5LID é fictício mas os fatos são verdadeiros.
73 DX de PY2YP - Cesar

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Solidariedade

Numa manhã, há muitos e muitos anos, cem mil, quinhentos mil ou mesmo um milhão de anos, o número exato não é relevante, a natureza encontrava-se numa dessas encruzilhadas evolucionárias sempre freqüentes mas raramente bem sucedidas. Caminhava pela savana um ser meio ereto, meio curvado, andar trôpego, cambaleante, parecia pouco à vontade com sua nova postura. Olhos atentos a qualquer movimento brusco, afinal a assustadora e perigosa noite mal havia terminado quando seus olhos se depuseram sobre uma forma indistinta no meio da relva, aproximou-se e viu um seu semelhante ferido, talvez por alguma fera noturna. O andarilho abaixou-se, arrastou a criatura para uma sombra, limpou suas feridas, deu-lhe de beber e dividiu com ele o pouco do alimento que trazia consigo. A natureza nesse exato instante da encruzilhada evolucionária decidiu qual caminho seguir.
O desenvolvimento da espécie humana, ao contrário do que se diz, não se deu pela inteligência, antes, decorreu da solidariedade. Naquela longínqua manhã ao dividir espontaneamente seu alimento aquele ser primitivo estabeleceu as mais profundas raízes da sobrevivência da espécie. Ali, naquela alvorada evolucionária, a natureza através do gesto do andarilho estabeleceu as bases de evolução da nova espécie e que haveriam por dar sustentação à sua sobrevivência e propagação. Não é por outra razão que em todas as culturas, em todas as religiões, o símbolo mais sagrado, o ponto mais alto da liturgia se dá com o ato de compartilhar o pão, torná-lo comum: a comunhão. A cada vez que celebramos a comunhão nos remetemos àquela longínqua manhã, invocamos os nossos mais profundos e primitivos instintos e que nos garantiu o sucesso evolucionário: o da solidariedade.
O radioamadorismo, igualmente, teve a solidariedade como seu amplificador de desenvolvimento; no antanho, a atividade principal do rádio-amador era o apoio às comunicações, ou, nas mais das vezes, o único provedor da comunidade. O próprio nome da liga norte-americana de rádio-amadores é decorrente dessa atividade: American Radio Relay League. O dicionário Webster assim define relay: "the act of passing along (as a message)". Nos primórdios do rádio era crença corrente de que quanto maior o comprimento de onda maior seria o alcance da comunicação, mas, na realidade, os sinais iam pouco além das cidades vizinhas. Assim, para retransmitir uma mensagem da Califórnia para o Kansas, por exemplo, era preciso uma rede estações que iam retransmitindo a mensagem, cidade por cidade. E lá iam os amadores passando noites em claro, movidos pela solidariedade, até verem as mensagens chegarem aos seus destinatários.
As comunicações comerciais melhoraram, tornaram-se mais confiáveis e praticamente extinguiram a prática do QTC. Teria o avanço tecnológico sepultado a solidariedade? Ao contrário: durante as expedições ou aparecimento de países mais difíceis, os semi-raros, o indefectível espírito de solidariedade vêm à tona e escutamos estarrecidos vários indicativos serem utilizados por solidários companheiros para que aqueles possam ser colocados no log do DX. Tenho por hábito a prática da coruja, raramente fico a chamar geral ou a trabalhar países que já tenho confirmado; durante as expedições procuro trabalhar as bandas que me faltam e passo o resto do tempo corujando pile-up, minha diversão favorita, e de quebra ainda assisto as maiores demonstrações de solidariedade imagináveis. Vejo colegas tidos como sérios irem para o log da expedição sem sequer estarem presentes nas suas estações. Esses colegas não evoluíram, nem como seres humanos, por trapaceiros, nem como radio-amadores, não passam de criaturas apequenadas pelas suas mazelas, mas seus scores, estes sim continuam evoluindo.
73 DX de PY2YP - Cesar