segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O diamente na areia

Devido às constantes turras entre a Arábia Saudita e o Iraque foi criado pela ONU uma zona desmilitarizada com a forma de um gigantesco losango. Esse losango chamado de Saudi Arabia - Iraq Neutral Zone atendia aos requisitos da ARRL para ser um país para o DXCC recebendo o prefixo 8Z4; àquela época não havia essa idiotice de entidade, era país mesmo.
Em 1978 eu estava morando em Atibaia e tinha uma estação modestíssima: T4XC, R4C, SB220 e um V invertido para 20 metros dependurado num poste de madeira; nada mais do que isso. Na sexta-feira dia 11 de agosto de 1978 a minha secretária entra na sala e diz: "tem um senhor dizendo que precisa falar-lhe e que é urgentíssimo", caso de vida ou morte finalizou ela. Eis que entra esbaforido ninguém menos que o Fred Carrato, PY4KL, que estava em Atibaia visitando sua filha casada com um engenheiro meu colega de obra. Após os abraços e cumprimentos ofereci uma poltrona ao Fred e passei a escutar que urgência era essa e ele então, entre uma bicada e outra no café, passou a contar sobre a grande novidade que um americano havia lhe falado há poucos dias em 15 metros; dissera-lhe: "Fred be aware during upcoming middle August finally the diamond in the sand will be on the air by a local." e mais não disse, nem precisava. O Fred e eu passamos a conjecturar quem seria o misterioso operador: JY3ZH é da família real da Jordânia, ou talvez o próprio rei JY1, ou o pessoal que operava HZ1AB ou talvez o grande telegrafista saudita HZ1HZ muito influente junto ao rei. O Fred precisava apenas de um país para entrar no Honnor Roll e um QSO com a Zona Neutra proporcionaria uma entrada com toda a pompa e cerimônia, afinal 8Z4 estava em primeiro lugar na lista dos most wanted, o país havia sido criado e ainda não houvera qualquer operação.
O problema era o mesmo de sempre: conseguir uma licença, que neste caso, excepcionalmente, eram duas. Os principais DXers do mundo tentavam em vão consegui-la. Depois de muito tentarem finalmente um operador não muito conhecido, mas muito influente, premido pelas pressões resolvera falar com o rei da Arábia Saudita, seu primo. Não se sabe bem como, conseguiu a permissão de ambos os países: pelo lado da Arábia o primo Faissal quebrou o galho; pelo lado do Iraq nunca ficou claro como foi que conseguiu a licença, mas o fato é que lá estava o Abdullah, HZ1BS, com toda a papelada e não deu outra, foi para a Zona Neutra em meados de agosto de 1978 com toda a bagagem: grupo gerador, tendas com ar condicionado, transceiver, antenas de fios, a comitiva de criados e algumas garotas mais valentes escolhidas do seu próprio harém. Na empolgação o Abdullah esqueceu um item essencial: o VFO remoto.
O DX realmente apareceu mas só no domingo produzindo o mais horrível pile-up que o Fred e eu já havíamos ouvido até então. Sem o VFO remoto e sem muita familiaridade com pile-ups o Abdullah não teve dúvidas e inovou com uma operação denominada russian roulette. Ao invés de chamar CQ ele fazia o que em contestes se chama peek and pounce, os DXers ficavam chamando em diferentes frequências e ele ia voltando aos chamados. A banda de 20 metros ficou coalhada entre 14.100 e 14.300 de operadores berrando: Abdullah this is piaui two yankee papah ou como o Fred chamava: Piaui four kilo lima kilo lima. Quando o Abdullah contestava alguém, uma turma enorme chamava na frequência ou alguns kilohertz mais acima ou mais abaixo e a banda parecia tomada por um gigantesco enxame de abelhas correndo para cima e para baixo atrás do HZ1BS/8Z4. Vez por outra o Abdullah parava por intermináveis minutos; em 14.195 o seu fiel escudeiro Salim, OE6EEG, anunciava: "Abdullah will be back in a few minutes, you know, he has lovely girls inside the tent.". Por sua vez o HZ1BS anunciava suas paradas dizendo: "I must QRT now, I have trouble with the generator...". Cá do nosso lado a linha Drake trouxe uma vantagem que se mostrou decisiva, coloquei o VFO do RX em 14.140 e o VFO do TX em 14.270, um para o pile-up europeu e outro para o americano, e com isso eu podia chamar transceiver pelo RX e pelo TX com apenas um retoque na sintonia. Este expediente evitava que precisasse correr com o VFO atrás do Abdullah sob o risco de ver os VFOS desmontarem.
Não tivemos sorte no domingo embora tenhamos ficado quase roucos de tanto chamar o Abdullah. O Fred por volta da meia noite foi para a casa da filha e eu ainda fiquei uns minutos até a propagação ir embora. Na segunda-feira peguei o Fred por volta das 15:00, quando a banda começava a dar sinais de vida, e deixei o Fred chamar sozinho. Por volta das 18:30 locais ele disse: Thank you Abdullah you are five nine from piaui for kilo lima. Peguei o microfone imediatamente mas o ele já havia virado o VFO, não adiantava correr atrás dele, a banda estava literalmente tomada, o jeito era sentar numa frequência e aguardar pela volta do HZ1BS. Ali pela meia noite desliguei tudo e fui dormir muito preocupado, a operação poderia ser encerrada a qualquer momento. Na terça-feira somente pude ir para casa depois das dezoito horas. Linear sintonizado, TX4C lá em cima, na banda americana e finalmente por volta das 22:45 zulu o Abdullah diz: "I am sorry guys but I have trouble with the generator". Hummm... tomara que seja uma rapidinha. Deixei o TX4C na mesma frequência e vez por outra eu chamava: "Are you there Abdullah this is piaui tu uaipi?" Finalmente às 23:06 zulu o Abdullah respondeu: "Yes, papah yankee two yankee papah I am back you are five nine". Respondi imediatamente: "Thank you. You are five nine, did you fix the generator?" Juro que ouvi uma gargalhada junto com o gigantesco barulho do pessoal chamando na frequência.
73 DX de PY2YP - Cesar

domingo, 2 de setembro de 2012

Esperando Godot

Samuel Beckett escreveu a peça de teatro Esperando Godot em 1952. A peça retrata o encontro ao acaso, ao pé de uma árvore, de dois vagabundos: Estragon e Vladimir, para esperarem por um certo Godot, não sabem quando ele chegará e nem sequer sabem verdadeiramente por que esperam. Mas estão esperando Godot. Ambos, desesperançados e quase desesperados já não podem viver sem Godot. É este o pretexto dos dois para viverem juntos e esperarem juntos. De vez em quando, um deles tenta separar-se do outro, fazendo uma espécie de excursão, mas sempre volta. Nada acontece. Só resta esperar. Até quando?
A peça foi apresentada pela primeira vez em Paris a 13 de janeiro de 1953 no pequeno Théâtre de Babylone, um teatro de vanguarda. Ficou em cartaz durante o ano inteiro. Teve o mesmo sucesso em Londres e Nova York. A peça foi traduzida para dezoito línguas e representada em todos os teatros do mundo. É um sucesso inexplicável, misterioso. Uma peça cuja ação consiste em não agir, o enredo é este: não acontece coisa alguma. Não só fez sucesso como cunhou uma expressão: esperando Godot, muito utilizada pelos pseudo intelectuais para expressarem qualquer espera infrutífera ou mesmo para a busca de um objetivo que sabe-se de antemão ser inalcançável.
Há algum tempo um aspirante a DXer me perguntou qual o segredo para atingir o topo do DXCC. A resposta não poderia ser mais simples: não há segredo. A única coisa que o DXer tem que fazer é permanecer ativo, não parar. Se olharmos para os quadros do DXCC vamos perceber uma grande quantidade de operadores que desistiram a poucos países do topo, morreram na praia, ficaram sem trabalhar cinco ou seis países, pouco mais, pouco menos. Em geral acontece assim: o DXer fica um ano sem fazer um país novo, nada acontece. Ele já não visita a estação com o mesmo entusiasmo de sempre. Passam dois anos e ele realmente deixa de operar por algum tempo; o livro de registro mostra um QSO aqui e outro acolá. Mais um ou dois anos e a antena começa a mostrar a falta de manutenção, até que um elemento se quebra pelo vento ou por alguma pipa desavisada. O rotor pára de funcionar, o linear na última vez que foi ligado fritou a chave de onda e a estação fica quase inoperante. É assim que o DXer desiste, aos poucos. O interesse pela caça aos países dá lugar a outro hobby qualquer, não demora e o DXer vende alguns itens da estação. Afinal Coréia, ou Navassa, ou quaisquer outros que o levariam ao top não vão sair mesmo, justifica ele. Quando finalmente sai uma expedição ou alguma operação solo, o infeliz já não pode trabalhar o país, ou pior, nem ficou sabendo. Os casos são inúmeros e me abstenho de citá-los, aliás, nem é preciso, eles desistiram há muito tempo.
Como em qualquer atividade as dificuldades surgem a todo instante, os percalços estão aí para serem vencidos. Ninguém fica rico do dia para a noite, claro, excetuam-se aqui os sortudos que ganham na loteria e os corruptos de todos os matizes. Como todas as grandes obras, constrói-se lenta e continuamente, os países vão sendo confirmados um a um. A nossa atividade é inteiramente dependente dos rumos que os políticos dos diversos países dão aos seus governos, com especial destaque aos países ditos democratas. Basta colocar república democrata no nome do país para se ter certeza de que o governo é tudo: totalitário, corrupto, fechado, menos democrata. É preciso apontar exemplos? Basta olhar o mapa geopolítico e lá estão eles, com principal destaque para os continentes asiático e africano. Os ditadores sul e centro-americanos, embora igualmente corruptos, sempre foram mais magnânimes nas concessões de licença para operação de rádio, o que de certa forma é um tanto quanto inexplicável, mas agradecemos assim mesmo. Há muitos anos era impossível um QSO com China, Albânia, Burma, Yemen, Lybia e outros tantos países sob governos democráticos. Nós DXers, ficávamos a esperar indefinidamente por esses e tantos outros. Para termos um pálida idéia de como era o mundo à época da guerra fria basta lembrar que para trabalhar qualquer um desses países o tempo médio de espera era de algo perto de 20 anos. Eu esperei 14 anos para trabalhar China, Moçambique, Laos, Cambodja e Vietnam; 17 anos para trabalhar Burma e Albânia; 23 anos para conseguir fazer Heard Island e Kermadec e, por último, 30 anos para conseguir Andaman. Este último saiu no começo da década de 80 mas eu havia ficado QRT entre janeiro de 1983 a abril de 1988 não pude trabalha-lo. Nesse mesmo período eu perdi, além de Andaman, Lybia, Heard e Kermadec que igualmente tiveram operações curtas. A paradinha custou caro.
Os tempos mudaram, hoje os países de maior tempo de espera, à exceção da Córeia do Norte, são aqueles que demandam maiores custos para uma expedição, como é o caso de Heard e Bouvet ou de países que têm restrições ambientais para permitirem uma expedição: Navassa, Kingman Reef e os nossos conhecidos Rochedos que recentemente começaram a sofrer restrições ambientais. Restrições estas - que embora corretas, são nas mais das vezes exageradas - estão dando oportunidade impar aos burocratas de plantão, veja que o fenômeno é universal, para imporem seus autoritarismos inconsequentes e desvairados e com isso exporem-se às mídias locais para consecução dos seus projetos políticos pessoais. As restrições, à exemplo da peça de Beckett, entraram para o modismo e vieram para ficar, Wake Island, KH9, em breve entrará para o top ten dos most wanteds. A ombrear com Wake entrarão na lista das ambientalmente proibidas diversos países do DXCC por encaixarem-se à perfeição para ostentarem o respeitável rótulo de santuários ecológicos: South Sandwich, Glorioso, Bouvet e outros, a lista é muito longa para citá-los aqui. Uma vez declaradas santuários ecológicos da humanidade serão imperiosas as concessões de licenças expedidas pelo Green Peace, ONU e várias ONGs corruptas.
A espera pode ser mais curta ou mais longa, a depender dos países que faltam, isto é, se dependem de autorização dos ditadores políticos ou dos ditadores ecológicos, ambos totalitaristas e desprovidos do mais comezinho bom senso. Por sorte, os ditadores não são perpétuos, alguns têm mandatos(?) mais curtos ou mais longos, mas cedo ou tarde, serão substituídos ou mortos. A velha e iracunda senhora dizia: "se o país existe, cedo ou tarde, você vai trabalhar." Assim, para que a espera não seja dolorosa, ficaremos a trabalhar o WAZ em todas as bandas, IOTA, Challenge, modos digitais ou outras atividades que não deixem as antenas caírem por falta de manutenção ou então sentaremos à sombra de uma árvore e poremo-nos a esperar Godot.
73 DX de PY2YP - Cesar